I - Introdução: a ausência de uma definição oficial
Quais são e como agem os Nutracêuticos? Essas são as perguntas que nos fazem os consumidores e os estudantes. Estes últimos, algumas vezes, acrescentam uma outra pergunta igualmente complicada: "dá para me emprestar tudo que você tem sobre isso?".
As perguntas são diretas e objetivas. E expressam a expectativa de que assim sejam também nossas respostas e, sempre, bem curtas e imediatas.
No caso, e para esse tipo de público, uma primeira resposta poderia ser algo como: "nutracêuticos são substâncias que se apresentam numa faixa cinzenta, entre comida e remédio, entre nutriente e medicamento, compreendendo não apenas nutrientes tradicionais, como vitaminas, sais minerais, aminoácidos ou ácidos graxos poli-insaturados, mas também não-nutrientes como as fibras, além de uma ampla gama de substâncias que parecem contribuir para a prevenção ou mesmo cura de doenças, como o licopeno do tomate, o resveratrol do vinho, os fitoesteróis da casca da uva, que podem estar presentes, ou não, em alimentos - então muitas vezes por isso denominados alimentos funcionais, sendo que os mecanismos de ação não estão, na maioria dos casos, plenamente conhecidos, baseando-se as afirmativas mais em dados epidemiológicos do que em ensaios bioquímicos ou fisiológicos.".
O problema é que essa resposta, além de conduzir a um mundo de subjetividades e contradições, típicas da área cinzenta e não delimitada onde se situa, até pode atender uma efêmera e preliminar curiosidade de consumidores, mas não sustenta, nem orienta, as medidas que devem ser tomadas pelos profissionais envolvidos com a questão, os quais devem, pelo menos, regulamentar a fabricação, a rotulagem e a propaganda desses produtos. Para este tipo de demanda, é preciso uma resposta mais longa e detalhada, fazendo uso de termos bem definidos, fazendo referencias a categorias bem delimitadas e, infelizmente, seja pelo atual estágio do nosso conhecimento, seja pelo modelo de raciocínio que vem sendo adotado, tal resposta não está disponível, nem parece se anunciar no horizonte próximo. As respostas aqui sinalizadas não serão mais que a apresentação e correlação de tentativas de resposta, caracterizando-se como um convite para uma reflexão conjunta, na expectativa de contribuir para uma construção conjunta dessa resposta.
De início, devemos reconhecer que existe uma crescente evidência, e um forte consenso entre pesquisadores científicos - a partir de dados epidemiológicos, ensaios clínicos e conhecimentos modernos da bioquímica nutricional - acerca de uma acentuada conecção entre a dieta e a saúde. E tal evidência incluiria não apenas fenômenos imediatos ou de curto prazo, mas também o desenvolvimento e controle de manifestações de natureza crônica.
Certos constituintes particulares dos alimentos - tanto nutrientes como não-nutrientes, como é o caso das fibras - apresentariam capacidade de afetar diversos fatores de risco para doenças.
Tal evidência não deveria ser pensada como uma descoberta recente. E´ notório que novas descobertas científicas, assim como novas circunstâncias econômicas e sócio-culturais, têm levado à uma maior oferta e a uma maior procura por essas substâncias ditas "nutracêuticas". Mas é também certo que, ao longo dos séculos, sempre foi atribuído aos alimentos algum papel funcional na gênesis, na prevenção e mesmo na cura de várias doenças.
O que é recente, e vem sendo objeto de atenção especial da vigilância sanitária, é a tendência para a produção industrial, em escala planetária, dessas substâncias que, embora de origem alimentar, são colocadas no mercado como formulações farmacêuticas, seja em termos de formato e de embalagem, seja também em termos de canais de comercialização.
Desse fenômeno de mercado emerge, como desdobramento espontâneo, uma demanda pela produção de normas e padrões que regulem a identidade e qualidade dos produtos, bem como sua rotulagem e propaganda. E isso não apenas para proteger a saúde do consumidor e a economia popular, mas igualmente para regulamentar a competição entre empresas e para instrumentalizar as ações dos órgãos governamentais de registro e inspeção.
Essa vasta gama de substâncias - que já ultrapassou de muito o rol de nutrientes tradicionais como vitaminas e minerais - vem sendo denominada como "nutracêuticos". E é neste contexto, o da normatização, que iremos então nos deparar com o primeiro obstáculo técnico: não existe uma definição clara e universalmente aceita, para o termo "nutracêutico".
Embora "nutracêutico" ou "nutraceuticals" seja um termo hoje reconhecido internacionalmente, a verdade é que ainda não existe um consenso sobre o seu significado. O objetivo deste artigo é discutir a construção desse conceito e dessa definição, a partir de iniciativas normativas brasileiras e internacionais, de forma a demonstrar que, com ou sem um conceito preciso e universalmente aceito, com ou sem uma definição definitiva e oficial, é premente o estabelecimento de normas de identidade e qualidade para os produtos colocados sob esse amplo e difuso "guarda-chuva" terminológico, ao mesmo tempo que dispormos de normas simples, objetivas, inteligíveis e estáveis, sobre rotulagem nutricional e sobre alegações funcionais - o que não é assim tão difícil - resolveria a maior parte dos conflitos hoje existentes no setor.
II - Definindo a partir das definições legais anteriores
A legislação sanitária brasileira define, em vários de seus instrumentos, "alimento" e "nutriente". E como está inclusive definido por meio de Decreto-Lei (e não por uma provisória portaria ministerial), parece razoável que, também por pragmatismo, se busque estabelecer futuras definições, complementares, a partir dessas definições básicas já oficialmente cristalizadas.
Inicialmente, vejamos a definição, estabelecida pelo Decreto-Lei 986 de 21/10/69, para alimento: "Toda substância ou mistura de substâncias, no estado sólido, líquido, pastoso ou qualquer outra forma adequada, destinada a fornecer ao organismo humano os elementos normais à sua formação, manutenção e desenvolvimento.".
Trinta anos mais tarde, a Portaria 41/98 da SVS/MS assumiria, como definição, que "Nutriente é qualquer substância química consumida normalmente como componente de um alimento, que:
a) proporcione energia, e/ou:
b) seja necessária para o crescimento, desenvolvimento e manutenção da saúde e da vida, e/ou
c) cuja carência faz com que se produza mudanças químicas ou fisiológicas características.
Complementarmente, a Portaria SVS/MS 42/98 veio trazer uma nova definição de alimento, sem obviamente dispor de poderes para anular a definição estabelecida pelo Decreto-Lei. Definiu então alimento como "toda substância que se ingere no estado natural, semi-elaborada ou elaborada, destinada ao consumo humano, incluídas as bebidas e qualquer outra substância utilizada em sua elaboração, preparo ou tratamento, excluídos os cosméticos, o tabaco e as substâncias utilizadas unicamente como medicamentos.".
Se temos duas definições para "alimento", parece coerente dispormos de uma definição, para "nutracêutico", que seja independente e até mesmo diferente da definição estabelecida para "nutriente". Mas qual definição seria essa e como construí-la. Ela poderia ser construída a partir dos produtos existentes no mercado, legalizando o que já se tornou prática comercial corrente. Ou poderia ser construída a partir da bibliografia científica e normativa internacional, particulamente daquilo que estiver sendo recomendado pelo Codex Alimentarius Commission. Ou, ainda, ser construída a partir da criatividade e do conhecimento acumulado pelos pesquisadores e técnicos em vigilância sanitária atuantes no Brasil. Talvez pudesse ser construída mesclando essas três alternativas.
III - Definindo a partir dos exemplos
Para definir a partir da realidade do mercado brasileiro, seria indispensável dispor, de início, de um levantamento completo e de uma análise crítica dessa realidade, de onde se pudesse, pelo menos, construir classificações para os produtos hoje comercializados. Ou seja, classificá-los em termos de suas finalidades (propriedades imunomodulatórias, atividade anti-oxidante, pro-bióticos etc.); classificá-los em termos de suas naturezas (produtos de síntese química, fitoquímicos naturais, alimentos fermentados etc.); e classificá-los em termos de sua característica química (vitaminas, minerais, ácidos graxos poli-insaturados etc.). Uma classificação quanto aos aspectos relacionados com risco toxicológico seria também recomendável.
Todo esse conjunto de conhecimentos organizados - considerando-se também aspectos relacionados com a percepção, a compreensão e as tendências de conduta do público brasileiro - seria fundamental para que a normatização integral, e não apenas uma definição semântica para "nutracêutico", viesse a ser edificada no Brasil.
Como esses produtos estão hoje oferecidos ao consumidor, nas farmácias, nos supermercados, no comércio de rua e em "sites" da internet, em quantidade e variedade que totalizam centenas de diferentes produtos, não faltariam elementos para a realização desse trabalho. E esse levantamento e análise estão sendo realizados, atualmente, pelo LabConsS - Laboratório de Consumo & Saúde - da Faculdade de Farmácia da UFRJ, envolvendo professores, alunos e estagiários, devendo, em breve, oferecer subsídios para uma melhor compreensão desse complexo quadro, bem como devendo oferecer alternativas para ações normatizas cientificamente sustentadas.
IV - Definindo a partir da bibliografia internacional
A bibliografia internacional informa que, em 1996, a Foundation for Innovation in Medicine (FIM), ofereceu a seguinte definição para "nutraceutical" (De Felice, 1996):
a food or parts of foods that provide medical-health benefits including the prevention
and/or treatment of disease. Such products may range from isolated nutrients, dietary
supplements and diets to genetically engineered `designer' foods, functional foods,
herbal products and processed foods such as cereals, soups and beverages.
Ou seja, "Entende-se, por Nutracêutico, um alimento ou parte de alimentos que oferecem benefícios medicinais, incluindo a prevenção e/ou tratamento de doenças. Tais produtos abrangem, de nutrientes isolados, suplementos nutricionais e produtos dietéticos, até alimentos engenheirados ou "desenhados" através da genética, passando por fitoquímicos e ainda por alimentos tais como bebidas, sopas e cereais.".
Já a Agencia de Saúde, do Canadá, por exemplo, assume que:
"Um nutracêutico é um produto isolado ou purificado de alimentos, o qual é vendido sob forma medicinal não usualmente associada com alimento. Um nutracêutico demonstra ter benefício fisiológico ou fornece proteção contra uma doença crônica.".
Pela definição daquela Fundação - e ao contrário do que preconiza o estudo da agência canadense - qualquer alimento, ou parte de alimento, poderia ser enquadrado como nutracêutico, desde que tenha algum benefício à saúde.
Outro obstáculo, bem visível no cenário internacional, é a existência de muitas designações em conflito pois, além de "nutraceutical", são também facilmente encontrados termos como: functional food, medical food, healthy food, designed food e muitos outros, chegando quase a duas dezenas. As companhias farmacêuticas parecem preferir termos como medical foods, nutraceuticals e functional foods, enquanto as indústrias de alimentos estariam optando por nutritional foods e functional foods. E, enquanto as primeiras fazem uso de um approach pelo enfoque da medicina, estas últimas, de alimentos, priorizam o approach nutricional em suas definições de produto e suas campanhas de marketing. Outro conflito já bem visível é que, enquanto os novos alimentos ambicionam ser vendidos no varejo farmacêutico, os novos "medicamentos" ambicionam ser vendidos nos supermercados e outros pontos de varejo de alimentos, o que parece reflexo natural do conceito adotado para o produto: algo no meio do caminho entre comida e medicamento.
E tudo isso já não pode ser visto, então, como uma questão semântica de menor importância. Parece óbvio que a construção do conceito - e seus conseqüentes desdobramentos, principalmente em termos normativos - mexe com um vasto e complexo conjunto de interesses empresariais, o que apenas complica e dificulta o processo de normatização, já em si, do ponto de vista estritamente técnico-científico, já seria por demais complexo e dificultoso.
V - Tentativas frustradas da Legislação Brasileira
Em outubro de 1994 o Ministério da Saúde fez reuniões, com especialistas convidados, para discutir legislação de alimentos para "fins especiais" e, dentro disso que deveria se restringir "dietas especiais" (diabéticos, hipertensos, redução de peso etc.), entendeu de discutir também os chamados "complementos nutricionais". Os convidados opinaram no sentido de se liberar, como "complementos", apenas as vitaminas e minerais, conforme preconizava o Codex Alimentarius, ficando os demais produtos para uma futura normatização, sob a denominação "alimentos funcionais". Contudo, já em março de 1995, o Ministério da Saúde estabeleceu normatização para os complementos e, além das substâncias ou nutrientes reconhecidos (vitaminas e minerais, incluiu produtos diversos, como espirulina, levedo de cerveja, óleo de fígado de cação, lecitina etc. (Portaria SNVS 19/95).
Logo depois, em julho de 1995, essa norma seria substituída por uma versão revista e reduzida, que excluía vários daqueles "complementos", como a lecitina e a espirulina. Via-se, ali, uma primeira frustração na tentativa de padronizar os produtos, dada a dificuldade de estabelecer parâmetros de identidade e qualidade, traduzíveis em indicadores que pudessem ser quantificados através de ensaios laboratoriais válidos para análises de fiscalização e controle. Ou seja, uma norma para óleo de fígado de cação haveria de, no mínimo, oferecer paradigmas que servissem para retirar do mercado as marcas que tentassem fraudar o produto, mediante mistura de óleos convencionais, como soja ou milho. E a Portaria de 1995 não lograva chegar a este mínimo detalhamento.
Cabe salientar que, na primeira versão, o termo Complemento Nutricional foi estabelecido em substituição aos termos Complemento Alimentar, Suplemento Alimentar e Suplemento Nutricional. Já na segunda versão, o termo Suplemento Nutricional foi ressucitado, restringindo-se então a aplicação do termo Complemento Nutricional, de onde se explicaria, então, que diversos produtos, como lecitina, gelatina, espirulina fossem excluídos da norma.
Pelo menos dois seriam os objetivos de uma norma para complementos nutricionais ou para nutracêuticos. De um lado, assegurar a identidade e a qualidade do produto. De outro lado, assegurar uma rotulagem que não induza o consumidor a erros. O Ministério da Saúde continuou estabelecendo e revisando inúmeras normas, nesse campo, desde aquela primeira, de 1995. E nota-se, ao longo dessas tentativas, um nítido processo de transição, com a autoridade sanitária abandonando a intenção de estabelecer padrões de identidade e qualidade, e procurando, ao menos, e restritivamente, cuidar dos aspectos de rotulagem e informação aos consumidores. Tal processo vem culminar com a Portaria SVS 841, de outubro de 1998 onde, em forma de Consulta Pública, a SVS/MS propõe uma regulamentação dos procedimentos de registro de alimentos com alegações de propriedades funcionais em sua rotulagem.
A regulamentação se restringiria aos nutrientes conhecidos na literatura científica atual, mas não listou tais nutrientes, embora, obviamente, não se trate de uma lista por demais extensa, deixando já, de início, aspectos difusos e arbitrários. E limitava as alegações apenas à descrição do "papel fisiológico no crescimento, desenvolvimento e funções normais do organismo". E novamente surge a questão anterior: "não seria mais lógico apresentar logo um quadro dos nutrientes permitidos, bem como das alegações permitidas, inclusive aproveitando para padronizar as palavras, as frases e as próprias dimensões desses "health claims" ou "nutrition claims"?
Como, ao construir a norma, não construiu, dentro dela, esse quadro básico e indispensável, parece razoável se supor que não o fez, justamente, por não dispor, ainda, de uma posição tecnicamente definida e sustentável. Ou seja, a indefinição e a subjetividade da norma expressariam nada mais que a indefinição e a subjetividade do conhecimento disponível. O problema é que a razão do estabelecimento da norma deveria ser exatamente o inverso: botar fim na subjetividade, no casuísmo e na instabilidade reinantes no mercado.
As dúvidas e imprecisões se multiplicam à medida que as fronteiras do assunto se alargam, e isso ocorre quando a Portaria busca definir o que é Alegação de Propriedade Funcional ou de Saúde: "uma declaração direta, indireta ou implícita de que um alimento, nutriente ou outra substância contida num alimento possua relação com uma situação de saúde. De acordo com o Decreto-Lei 986/69, artigo 56, estão excluídos os produtos 'com finalidade medicamentosa ou terapêutica'. Entende-se que finalidade medicamentosa ou terapêutica são as relacionadas a efeitos curativos ou preventivos.".
Abandona-se então o modelo normativo bromatológico - onde a norma estabelece identidade e qualidade para cada produto, como leite, farinha de trigo, iogurte, salsicha, pessego em calda etc. - para adotar um modelo mais próximo do contexto farmacológico. E, em vez de se estabelecer uma norma para cada tipo de nutracêutico, a Portaria estabelece que, para efetuar o registro, o fabricante se obrigaria a apresentar, além de licença de funcionamento, alvará sanitário, formulários, DARF e também o texto e a cópia do layout da rotulagem, um relatório técnico informando:
- Denominação do produto
- Finalidade de uso
- Modo de uso (ingestão recomendada pelo fabricante)
- Descrição científica dos ingredientes, segundo espécie de origem botânica, animal ou mineral.
- Composição e/ou formulação do produto (lista dos ingredientes)
- Composição química e/ou caracterização molecular
- Comprovação de uso tradicional, observado na população, quando for o caso.
- Ensaios nutricionais e ou farmacológicos e ou toxicológicos em animais de experimentação, conforme o caso.
- Ensaios bioquímicos "in vitro" relativos a ação do produto ou componente, quando for o caso.
- Estudos epidemiológicos, quando for o caso
- Ensaios clínicos, quando for o caso.
- Outras evidências científicas existentes em literatura e organismos internacionais de saúde sobre as propriedades e características do produto.
- Descrição da Metodologia analítica para avaliação dos componentes alegados.
Nada disso é novidade. Há mais de trinta anos o Ministério da Saúde se defronta com esse desafio e, para regulamentar os primeiros alimentos para dietas especiais, incluindo os edulcorantes, imaginou ser possível dividi-los em duas categorias: uns seriam para pessoas sãs e, sendo alimentos, seriam registrados como "alimentos dietéticos" na então DINAL - Divisão Nacional de Vigilância Sanitária de Alimentos, da Secretaria Nacional de Vigilância Sanitária. E outros seriam para pessoas com doenças, e seriam assim registrados na DIMED, a Divisão de Medicamentos. Esse mecanismo já mostrou suficientemente, ao longo do tempo, que não dá conta de administrar o fenômeno "alimentos para dietas especiais ou alimentos funcionais" e que, definitivamente, é um modelo classificatório que não funciona, de onde se explicaria, em parte, esse desgastante procedimento de se editar uma norma atrás da outra, uma modificando completamente os fundamentos e premissas da norma anterior, o que torna o sistema normativo incompreensível e inacessível para as empresas e para os profissionais do setor, exceto para aquele pequeno grupo de técnicos e professores envolvidos diretamente no processo.
VI - Tendências e Recomendações
O Codex Alimentarius Commission vem trabalhando na regulamentação internacional das "Declarações de Propriedades Saudáveis". Mas também ali se verifica a existência de uma zona indefinida, agora entre o que se entende por "propriedades saudáveis" e "propriedades funcionais". Muitos países, por exemplo, permitem, na rotulagem, que se destaque a propriedade relativa aos níveis de colesterol sanguíneo, entendendo que isso seja declaração de propriedades funcionais de nutrientes presentes no alimento. Outros países, porém, entendem que o consumidor, ao ler tal mensagem no rótulo, fazem uma associação direta e imediata com a propriedade saudável: a redução do nível de colesterol sanguíneo previne as enfermidades cardíacas. E o que, então, pareceria uma singela informação bromatológica ou nutricional, emerge, na prática, como um poderoso "health claim".
Nesse contexto, a Dinamarca entende que não se deva separar um conceito do outro, quando se trabalha no sentido de regulamentar rotulagem. A Consumers International tem sido ainda mais enfática, defendendo que todas as declarações de propriedades, se vão verdadeiramente beneficiar os consumidores, devem então ser claramente definidas, fáceis de entender, verídicas e capazes de serem cumpridas. E alerta: "O potencial de confundir e induzir os consumidores a erros, perdendo por conseqüência toda confiança nas declarações de propriedades, é muito alto e deve ser evitado a todo custo. Consumidores, de todas as partes do mundo, têm indicado que existe confusão e falta de confiança na maneira em que se empregam muitas declarações de propriedades.".
A Resolução nº 16, de 30 de abril de 1999, da ANVISA - Agência Nacional de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde, parece uma tentativa de resolver, pelo menos temporariamente, os conflitos que não conseguiu equacionar com as normas anteriores. Para isso, inaugurou um novo termo; já não nutracêutico, engineered or designed food, mas "alimentos e/ou novos ingredientes", assumindo para estes, mas dali alertando estar excluindo os aditivos e coadjuvantes de tecnologia de fabricação, a seguinte definição:
ALIMENTOS E OU NOVOS INGREDIENTES: são os alimentos ou
substâncias sem histórico de consumo no País, ou alimentos com
substâncias já consumidas, e que entretanto venham a ser adicionadas ou
utilizadas em níveis muito superiores aos atualmente observados nos
alimentos utilizados na dieta regular.
O fato de definir, usando termos que não têm definição, ou criando categorias que não podem ser depois implementadas de forma objetiva - na medida que não apresenta a listagem do que entende por alimentos ou substâncias com histórico de consumo no País, nem indica onde ela pode ser encontrada ou a quem compete decidir o que se enquadra ou deixa de se enquadrar nessa categoria - parece, infelizmente, repetir o mesmo equívoco ou, no mínimo, a mesma limitação que terminou inviabilizando todas as normatizações anteriores.
Novos capítulos e novas normas certamente continuarão sendo escritas, inclusive porque novas percepções, novos conceitos e novos produtos continuarão surgindo na sociedade e no mercado. Mas a existência de um quadro, estabelecendo quais são os nutrientes e o que pode ser anunciado, para cada um deles, nos respectivos rótulos, e definindo com que palavras e onde e como isso pode estar escrito, certamente resolveria a maior parte dos problemas hoje existentes.
Para os demais problemas, particularmente aqueles que envolvem substâncias que não são, pelo menos ainda, consideradas nutrientes convencionais, seriam necessárias medidas mais específicas. E mesmo essas enfrentarão sérios obstáculos operacionais, pois é notório que não basta regulamentar a rotulagem, pois tanto no Brasil, como também na Europa e nos Estados Unidos, tem sido prática usual adicionar, ao que o rótulo oficial informa, folhetos promocionais, que são disponibilizados na própria loja, e onde então se registram várias propriedades funcionais e medicinais que, sem comprovação científica, estão proibidas de transcrição nos rótulos.
VII - Referências Bibliográficas
AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA - ANVISA Aprova o regulamento técnico que estabelece as diretrizes básicas para análise e comprovação de propriedades funcionais e ou de saúde alegadas em rotulagem de alimentos. Resolução nº 18, de 3 de dezembro de 1999.
AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA - ANVISA. Aprova o regulamento técnico de procedimentos para registro de alimento com alegação de propriedades funcionais e ou de saúde em sua rotulagem. Resolução nº 19, de 10 de dezembro de 1999.
AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA - ANVISA.. Aprova o regulamento técnico de procedimentos para registro de alimentos e ou novos ingredientes. Resolução nº 16, de 3 de dezembro de 1999.
BRASIL, Decreto-Lei nº 986 de 21, de outubro de 1969. Institui Normas Básicas sobre Alimentos. Diário Oficial da União, 21 de outubro de 1969.
CÂNDIDO & CAMPOS, . Alimentos Funcionais - Uma Revisão. Bol. SBCTA,v.29, n.2, p.107, 1995.
Comité del Codex sobre Etiquetado de Alimentos. CX/FL 98/10. Anteproyecto de recomendaciones para el uso de declaraciones de propiedades saludables. Comentarios de gobiernos en el trâmite 3. Ottawa, mayo de 1998.
DeFelice, S. L. The need for a research-intensive nutraceutical industry: what can congress do? (the claims research connection). In S. Shaw (Ed.), Functional food, nutraceutical or pharmaceutical? 15-26 p. London:IBC, 1996.
GARY et al. Food Safety and Health Claims. Food Technology, may, p.92, 1994.
GISMONDO MR; DRAGO L; LOMBARDI A . Review of Probiotics Available to Modify Gastrointestinal Flora. Int J Antimicrob Agents, v..12, n.4, p. 287, aug., 1999.
NANCY, M. Functional Foods and Market Entry. The World of Ingredients, out/nov, p. 36, 1994.
PARK, Y.K. et al. Recentes Progressos dos Alimentos Funcionais. Bol SBCTA, v.31, n.2, p.200, 1999.
PETER FÜRST. Moderated discussion. American Journal of Clinical Nutrition, v.71, n.6: 1688S-1690S, june, 2000
ROBERFROID, M.B. What is beneficial for Health? The Concept of Functional Food. Food and Chemical Toxicology, n.37, p.1039, 1999.
Autores:
Luiz Eduardo Carvalho, professor da Faculdade de Farmácia da UFRJ (luizeduardo@ufrj.br)
Mirian Ribeiro Leite Moura, Departamento de Produtos Naturais e Alimentos (mmirian@pharma.ufrj.br)
Fonte: ACD UFRJ.
Quais são e como agem os Nutracêuticos? Essas são as perguntas que nos fazem os consumidores e os estudantes. Estes últimos, algumas vezes, acrescentam uma outra pergunta igualmente complicada: "dá para me emprestar tudo que você tem sobre isso?".
As perguntas são diretas e objetivas. E expressam a expectativa de que assim sejam também nossas respostas e, sempre, bem curtas e imediatas.
No caso, e para esse tipo de público, uma primeira resposta poderia ser algo como: "nutracêuticos são substâncias que se apresentam numa faixa cinzenta, entre comida e remédio, entre nutriente e medicamento, compreendendo não apenas nutrientes tradicionais, como vitaminas, sais minerais, aminoácidos ou ácidos graxos poli-insaturados, mas também não-nutrientes como as fibras, além de uma ampla gama de substâncias que parecem contribuir para a prevenção ou mesmo cura de doenças, como o licopeno do tomate, o resveratrol do vinho, os fitoesteróis da casca da uva, que podem estar presentes, ou não, em alimentos - então muitas vezes por isso denominados alimentos funcionais, sendo que os mecanismos de ação não estão, na maioria dos casos, plenamente conhecidos, baseando-se as afirmativas mais em dados epidemiológicos do que em ensaios bioquímicos ou fisiológicos.".
O problema é que essa resposta, além de conduzir a um mundo de subjetividades e contradições, típicas da área cinzenta e não delimitada onde se situa, até pode atender uma efêmera e preliminar curiosidade de consumidores, mas não sustenta, nem orienta, as medidas que devem ser tomadas pelos profissionais envolvidos com a questão, os quais devem, pelo menos, regulamentar a fabricação, a rotulagem e a propaganda desses produtos. Para este tipo de demanda, é preciso uma resposta mais longa e detalhada, fazendo uso de termos bem definidos, fazendo referencias a categorias bem delimitadas e, infelizmente, seja pelo atual estágio do nosso conhecimento, seja pelo modelo de raciocínio que vem sendo adotado, tal resposta não está disponível, nem parece se anunciar no horizonte próximo. As respostas aqui sinalizadas não serão mais que a apresentação e correlação de tentativas de resposta, caracterizando-se como um convite para uma reflexão conjunta, na expectativa de contribuir para uma construção conjunta dessa resposta.
De início, devemos reconhecer que existe uma crescente evidência, e um forte consenso entre pesquisadores científicos - a partir de dados epidemiológicos, ensaios clínicos e conhecimentos modernos da bioquímica nutricional - acerca de uma acentuada conecção entre a dieta e a saúde. E tal evidência incluiria não apenas fenômenos imediatos ou de curto prazo, mas também o desenvolvimento e controle de manifestações de natureza crônica.
Certos constituintes particulares dos alimentos - tanto nutrientes como não-nutrientes, como é o caso das fibras - apresentariam capacidade de afetar diversos fatores de risco para doenças.
Tal evidência não deveria ser pensada como uma descoberta recente. E´ notório que novas descobertas científicas, assim como novas circunstâncias econômicas e sócio-culturais, têm levado à uma maior oferta e a uma maior procura por essas substâncias ditas "nutracêuticas". Mas é também certo que, ao longo dos séculos, sempre foi atribuído aos alimentos algum papel funcional na gênesis, na prevenção e mesmo na cura de várias doenças.
O que é recente, e vem sendo objeto de atenção especial da vigilância sanitária, é a tendência para a produção industrial, em escala planetária, dessas substâncias que, embora de origem alimentar, são colocadas no mercado como formulações farmacêuticas, seja em termos de formato e de embalagem, seja também em termos de canais de comercialização.
Desse fenômeno de mercado emerge, como desdobramento espontâneo, uma demanda pela produção de normas e padrões que regulem a identidade e qualidade dos produtos, bem como sua rotulagem e propaganda. E isso não apenas para proteger a saúde do consumidor e a economia popular, mas igualmente para regulamentar a competição entre empresas e para instrumentalizar as ações dos órgãos governamentais de registro e inspeção.
Essa vasta gama de substâncias - que já ultrapassou de muito o rol de nutrientes tradicionais como vitaminas e minerais - vem sendo denominada como "nutracêuticos". E é neste contexto, o da normatização, que iremos então nos deparar com o primeiro obstáculo técnico: não existe uma definição clara e universalmente aceita, para o termo "nutracêutico".
Embora "nutracêutico" ou "nutraceuticals" seja um termo hoje reconhecido internacionalmente, a verdade é que ainda não existe um consenso sobre o seu significado. O objetivo deste artigo é discutir a construção desse conceito e dessa definição, a partir de iniciativas normativas brasileiras e internacionais, de forma a demonstrar que, com ou sem um conceito preciso e universalmente aceito, com ou sem uma definição definitiva e oficial, é premente o estabelecimento de normas de identidade e qualidade para os produtos colocados sob esse amplo e difuso "guarda-chuva" terminológico, ao mesmo tempo que dispormos de normas simples, objetivas, inteligíveis e estáveis, sobre rotulagem nutricional e sobre alegações funcionais - o que não é assim tão difícil - resolveria a maior parte dos conflitos hoje existentes no setor.
II - Definindo a partir das definições legais anteriores
A legislação sanitária brasileira define, em vários de seus instrumentos, "alimento" e "nutriente". E como está inclusive definido por meio de Decreto-Lei (e não por uma provisória portaria ministerial), parece razoável que, também por pragmatismo, se busque estabelecer futuras definições, complementares, a partir dessas definições básicas já oficialmente cristalizadas.
Inicialmente, vejamos a definição, estabelecida pelo Decreto-Lei 986 de 21/10/69, para alimento: "Toda substância ou mistura de substâncias, no estado sólido, líquido, pastoso ou qualquer outra forma adequada, destinada a fornecer ao organismo humano os elementos normais à sua formação, manutenção e desenvolvimento.".
Trinta anos mais tarde, a Portaria 41/98 da SVS/MS assumiria, como definição, que "Nutriente é qualquer substância química consumida normalmente como componente de um alimento, que:
a) proporcione energia, e/ou:
b) seja necessária para o crescimento, desenvolvimento e manutenção da saúde e da vida, e/ou
c) cuja carência faz com que se produza mudanças químicas ou fisiológicas características.
Complementarmente, a Portaria SVS/MS 42/98 veio trazer uma nova definição de alimento, sem obviamente dispor de poderes para anular a definição estabelecida pelo Decreto-Lei. Definiu então alimento como "toda substância que se ingere no estado natural, semi-elaborada ou elaborada, destinada ao consumo humano, incluídas as bebidas e qualquer outra substância utilizada em sua elaboração, preparo ou tratamento, excluídos os cosméticos, o tabaco e as substâncias utilizadas unicamente como medicamentos.".
Se temos duas definições para "alimento", parece coerente dispormos de uma definição, para "nutracêutico", que seja independente e até mesmo diferente da definição estabelecida para "nutriente". Mas qual definição seria essa e como construí-la. Ela poderia ser construída a partir dos produtos existentes no mercado, legalizando o que já se tornou prática comercial corrente. Ou poderia ser construída a partir da bibliografia científica e normativa internacional, particulamente daquilo que estiver sendo recomendado pelo Codex Alimentarius Commission. Ou, ainda, ser construída a partir da criatividade e do conhecimento acumulado pelos pesquisadores e técnicos em vigilância sanitária atuantes no Brasil. Talvez pudesse ser construída mesclando essas três alternativas.
III - Definindo a partir dos exemplos
Para definir a partir da realidade do mercado brasileiro, seria indispensável dispor, de início, de um levantamento completo e de uma análise crítica dessa realidade, de onde se pudesse, pelo menos, construir classificações para os produtos hoje comercializados. Ou seja, classificá-los em termos de suas finalidades (propriedades imunomodulatórias, atividade anti-oxidante, pro-bióticos etc.); classificá-los em termos de suas naturezas (produtos de síntese química, fitoquímicos naturais, alimentos fermentados etc.); e classificá-los em termos de sua característica química (vitaminas, minerais, ácidos graxos poli-insaturados etc.). Uma classificação quanto aos aspectos relacionados com risco toxicológico seria também recomendável.
Todo esse conjunto de conhecimentos organizados - considerando-se também aspectos relacionados com a percepção, a compreensão e as tendências de conduta do público brasileiro - seria fundamental para que a normatização integral, e não apenas uma definição semântica para "nutracêutico", viesse a ser edificada no Brasil.
Como esses produtos estão hoje oferecidos ao consumidor, nas farmácias, nos supermercados, no comércio de rua e em "sites" da internet, em quantidade e variedade que totalizam centenas de diferentes produtos, não faltariam elementos para a realização desse trabalho. E esse levantamento e análise estão sendo realizados, atualmente, pelo LabConsS - Laboratório de Consumo & Saúde - da Faculdade de Farmácia da UFRJ, envolvendo professores, alunos e estagiários, devendo, em breve, oferecer subsídios para uma melhor compreensão desse complexo quadro, bem como devendo oferecer alternativas para ações normatizas cientificamente sustentadas.
IV - Definindo a partir da bibliografia internacional
A bibliografia internacional informa que, em 1996, a Foundation for Innovation in Medicine (FIM), ofereceu a seguinte definição para "nutraceutical" (De Felice, 1996):
a food or parts of foods that provide medical-health benefits including the prevention
and/or treatment of disease. Such products may range from isolated nutrients, dietary
supplements and diets to genetically engineered `designer' foods, functional foods,
herbal products and processed foods such as cereals, soups and beverages.
Ou seja, "Entende-se, por Nutracêutico, um alimento ou parte de alimentos que oferecem benefícios medicinais, incluindo a prevenção e/ou tratamento de doenças. Tais produtos abrangem, de nutrientes isolados, suplementos nutricionais e produtos dietéticos, até alimentos engenheirados ou "desenhados" através da genética, passando por fitoquímicos e ainda por alimentos tais como bebidas, sopas e cereais.".
Já a Agencia de Saúde, do Canadá, por exemplo, assume que:
"Um nutracêutico é um produto isolado ou purificado de alimentos, o qual é vendido sob forma medicinal não usualmente associada com alimento. Um nutracêutico demonstra ter benefício fisiológico ou fornece proteção contra uma doença crônica.".
Pela definição daquela Fundação - e ao contrário do que preconiza o estudo da agência canadense - qualquer alimento, ou parte de alimento, poderia ser enquadrado como nutracêutico, desde que tenha algum benefício à saúde.
Outro obstáculo, bem visível no cenário internacional, é a existência de muitas designações em conflito pois, além de "nutraceutical", são também facilmente encontrados termos como: functional food, medical food, healthy food, designed food e muitos outros, chegando quase a duas dezenas. As companhias farmacêuticas parecem preferir termos como medical foods, nutraceuticals e functional foods, enquanto as indústrias de alimentos estariam optando por nutritional foods e functional foods. E, enquanto as primeiras fazem uso de um approach pelo enfoque da medicina, estas últimas, de alimentos, priorizam o approach nutricional em suas definições de produto e suas campanhas de marketing. Outro conflito já bem visível é que, enquanto os novos alimentos ambicionam ser vendidos no varejo farmacêutico, os novos "medicamentos" ambicionam ser vendidos nos supermercados e outros pontos de varejo de alimentos, o que parece reflexo natural do conceito adotado para o produto: algo no meio do caminho entre comida e medicamento.
E tudo isso já não pode ser visto, então, como uma questão semântica de menor importância. Parece óbvio que a construção do conceito - e seus conseqüentes desdobramentos, principalmente em termos normativos - mexe com um vasto e complexo conjunto de interesses empresariais, o que apenas complica e dificulta o processo de normatização, já em si, do ponto de vista estritamente técnico-científico, já seria por demais complexo e dificultoso.
V - Tentativas frustradas da Legislação Brasileira
Em outubro de 1994 o Ministério da Saúde fez reuniões, com especialistas convidados, para discutir legislação de alimentos para "fins especiais" e, dentro disso que deveria se restringir "dietas especiais" (diabéticos, hipertensos, redução de peso etc.), entendeu de discutir também os chamados "complementos nutricionais". Os convidados opinaram no sentido de se liberar, como "complementos", apenas as vitaminas e minerais, conforme preconizava o Codex Alimentarius, ficando os demais produtos para uma futura normatização, sob a denominação "alimentos funcionais". Contudo, já em março de 1995, o Ministério da Saúde estabeleceu normatização para os complementos e, além das substâncias ou nutrientes reconhecidos (vitaminas e minerais, incluiu produtos diversos, como espirulina, levedo de cerveja, óleo de fígado de cação, lecitina etc. (Portaria SNVS 19/95).
Logo depois, em julho de 1995, essa norma seria substituída por uma versão revista e reduzida, que excluía vários daqueles "complementos", como a lecitina e a espirulina. Via-se, ali, uma primeira frustração na tentativa de padronizar os produtos, dada a dificuldade de estabelecer parâmetros de identidade e qualidade, traduzíveis em indicadores que pudessem ser quantificados através de ensaios laboratoriais válidos para análises de fiscalização e controle. Ou seja, uma norma para óleo de fígado de cação haveria de, no mínimo, oferecer paradigmas que servissem para retirar do mercado as marcas que tentassem fraudar o produto, mediante mistura de óleos convencionais, como soja ou milho. E a Portaria de 1995 não lograva chegar a este mínimo detalhamento.
Cabe salientar que, na primeira versão, o termo Complemento Nutricional foi estabelecido em substituição aos termos Complemento Alimentar, Suplemento Alimentar e Suplemento Nutricional. Já na segunda versão, o termo Suplemento Nutricional foi ressucitado, restringindo-se então a aplicação do termo Complemento Nutricional, de onde se explicaria, então, que diversos produtos, como lecitina, gelatina, espirulina fossem excluídos da norma.
Pelo menos dois seriam os objetivos de uma norma para complementos nutricionais ou para nutracêuticos. De um lado, assegurar a identidade e a qualidade do produto. De outro lado, assegurar uma rotulagem que não induza o consumidor a erros. O Ministério da Saúde continuou estabelecendo e revisando inúmeras normas, nesse campo, desde aquela primeira, de 1995. E nota-se, ao longo dessas tentativas, um nítido processo de transição, com a autoridade sanitária abandonando a intenção de estabelecer padrões de identidade e qualidade, e procurando, ao menos, e restritivamente, cuidar dos aspectos de rotulagem e informação aos consumidores. Tal processo vem culminar com a Portaria SVS 841, de outubro de 1998 onde, em forma de Consulta Pública, a SVS/MS propõe uma regulamentação dos procedimentos de registro de alimentos com alegações de propriedades funcionais em sua rotulagem.
A regulamentação se restringiria aos nutrientes conhecidos na literatura científica atual, mas não listou tais nutrientes, embora, obviamente, não se trate de uma lista por demais extensa, deixando já, de início, aspectos difusos e arbitrários. E limitava as alegações apenas à descrição do "papel fisiológico no crescimento, desenvolvimento e funções normais do organismo". E novamente surge a questão anterior: "não seria mais lógico apresentar logo um quadro dos nutrientes permitidos, bem como das alegações permitidas, inclusive aproveitando para padronizar as palavras, as frases e as próprias dimensões desses "health claims" ou "nutrition claims"?
Como, ao construir a norma, não construiu, dentro dela, esse quadro básico e indispensável, parece razoável se supor que não o fez, justamente, por não dispor, ainda, de uma posição tecnicamente definida e sustentável. Ou seja, a indefinição e a subjetividade da norma expressariam nada mais que a indefinição e a subjetividade do conhecimento disponível. O problema é que a razão do estabelecimento da norma deveria ser exatamente o inverso: botar fim na subjetividade, no casuísmo e na instabilidade reinantes no mercado.
As dúvidas e imprecisões se multiplicam à medida que as fronteiras do assunto se alargam, e isso ocorre quando a Portaria busca definir o que é Alegação de Propriedade Funcional ou de Saúde: "uma declaração direta, indireta ou implícita de que um alimento, nutriente ou outra substância contida num alimento possua relação com uma situação de saúde. De acordo com o Decreto-Lei 986/69, artigo 56, estão excluídos os produtos 'com finalidade medicamentosa ou terapêutica'. Entende-se que finalidade medicamentosa ou terapêutica são as relacionadas a efeitos curativos ou preventivos.".
Abandona-se então o modelo normativo bromatológico - onde a norma estabelece identidade e qualidade para cada produto, como leite, farinha de trigo, iogurte, salsicha, pessego em calda etc. - para adotar um modelo mais próximo do contexto farmacológico. E, em vez de se estabelecer uma norma para cada tipo de nutracêutico, a Portaria estabelece que, para efetuar o registro, o fabricante se obrigaria a apresentar, além de licença de funcionamento, alvará sanitário, formulários, DARF e também o texto e a cópia do layout da rotulagem, um relatório técnico informando:
- Denominação do produto
- Finalidade de uso
- Modo de uso (ingestão recomendada pelo fabricante)
- Descrição científica dos ingredientes, segundo espécie de origem botânica, animal ou mineral.
- Composição e/ou formulação do produto (lista dos ingredientes)
- Composição química e/ou caracterização molecular
- Comprovação de uso tradicional, observado na população, quando for o caso.
- Ensaios nutricionais e ou farmacológicos e ou toxicológicos em animais de experimentação, conforme o caso.
- Ensaios bioquímicos "in vitro" relativos a ação do produto ou componente, quando for o caso.
- Estudos epidemiológicos, quando for o caso
- Ensaios clínicos, quando for o caso.
- Outras evidências científicas existentes em literatura e organismos internacionais de saúde sobre as propriedades e características do produto.
- Descrição da Metodologia analítica para avaliação dos componentes alegados.
Nada disso é novidade. Há mais de trinta anos o Ministério da Saúde se defronta com esse desafio e, para regulamentar os primeiros alimentos para dietas especiais, incluindo os edulcorantes, imaginou ser possível dividi-los em duas categorias: uns seriam para pessoas sãs e, sendo alimentos, seriam registrados como "alimentos dietéticos" na então DINAL - Divisão Nacional de Vigilância Sanitária de Alimentos, da Secretaria Nacional de Vigilância Sanitária. E outros seriam para pessoas com doenças, e seriam assim registrados na DIMED, a Divisão de Medicamentos. Esse mecanismo já mostrou suficientemente, ao longo do tempo, que não dá conta de administrar o fenômeno "alimentos para dietas especiais ou alimentos funcionais" e que, definitivamente, é um modelo classificatório que não funciona, de onde se explicaria, em parte, esse desgastante procedimento de se editar uma norma atrás da outra, uma modificando completamente os fundamentos e premissas da norma anterior, o que torna o sistema normativo incompreensível e inacessível para as empresas e para os profissionais do setor, exceto para aquele pequeno grupo de técnicos e professores envolvidos diretamente no processo.
VI - Tendências e Recomendações
O Codex Alimentarius Commission vem trabalhando na regulamentação internacional das "Declarações de Propriedades Saudáveis". Mas também ali se verifica a existência de uma zona indefinida, agora entre o que se entende por "propriedades saudáveis" e "propriedades funcionais". Muitos países, por exemplo, permitem, na rotulagem, que se destaque a propriedade relativa aos níveis de colesterol sanguíneo, entendendo que isso seja declaração de propriedades funcionais de nutrientes presentes no alimento. Outros países, porém, entendem que o consumidor, ao ler tal mensagem no rótulo, fazem uma associação direta e imediata com a propriedade saudável: a redução do nível de colesterol sanguíneo previne as enfermidades cardíacas. E o que, então, pareceria uma singela informação bromatológica ou nutricional, emerge, na prática, como um poderoso "health claim".
Nesse contexto, a Dinamarca entende que não se deva separar um conceito do outro, quando se trabalha no sentido de regulamentar rotulagem. A Consumers International tem sido ainda mais enfática, defendendo que todas as declarações de propriedades, se vão verdadeiramente beneficiar os consumidores, devem então ser claramente definidas, fáceis de entender, verídicas e capazes de serem cumpridas. E alerta: "O potencial de confundir e induzir os consumidores a erros, perdendo por conseqüência toda confiança nas declarações de propriedades, é muito alto e deve ser evitado a todo custo. Consumidores, de todas as partes do mundo, têm indicado que existe confusão e falta de confiança na maneira em que se empregam muitas declarações de propriedades.".
A Resolução nº 16, de 30 de abril de 1999, da ANVISA - Agência Nacional de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde, parece uma tentativa de resolver, pelo menos temporariamente, os conflitos que não conseguiu equacionar com as normas anteriores. Para isso, inaugurou um novo termo; já não nutracêutico, engineered or designed food, mas "alimentos e/ou novos ingredientes", assumindo para estes, mas dali alertando estar excluindo os aditivos e coadjuvantes de tecnologia de fabricação, a seguinte definição:
ALIMENTOS E OU NOVOS INGREDIENTES: são os alimentos ou
substâncias sem histórico de consumo no País, ou alimentos com
substâncias já consumidas, e que entretanto venham a ser adicionadas ou
utilizadas em níveis muito superiores aos atualmente observados nos
alimentos utilizados na dieta regular.
O fato de definir, usando termos que não têm definição, ou criando categorias que não podem ser depois implementadas de forma objetiva - na medida que não apresenta a listagem do que entende por alimentos ou substâncias com histórico de consumo no País, nem indica onde ela pode ser encontrada ou a quem compete decidir o que se enquadra ou deixa de se enquadrar nessa categoria - parece, infelizmente, repetir o mesmo equívoco ou, no mínimo, a mesma limitação que terminou inviabilizando todas as normatizações anteriores.
Novos capítulos e novas normas certamente continuarão sendo escritas, inclusive porque novas percepções, novos conceitos e novos produtos continuarão surgindo na sociedade e no mercado. Mas a existência de um quadro, estabelecendo quais são os nutrientes e o que pode ser anunciado, para cada um deles, nos respectivos rótulos, e definindo com que palavras e onde e como isso pode estar escrito, certamente resolveria a maior parte dos problemas hoje existentes.
Para os demais problemas, particularmente aqueles que envolvem substâncias que não são, pelo menos ainda, consideradas nutrientes convencionais, seriam necessárias medidas mais específicas. E mesmo essas enfrentarão sérios obstáculos operacionais, pois é notório que não basta regulamentar a rotulagem, pois tanto no Brasil, como também na Europa e nos Estados Unidos, tem sido prática usual adicionar, ao que o rótulo oficial informa, folhetos promocionais, que são disponibilizados na própria loja, e onde então se registram várias propriedades funcionais e medicinais que, sem comprovação científica, estão proibidas de transcrição nos rótulos.
VII - Referências Bibliográficas
AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA - ANVISA Aprova o regulamento técnico que estabelece as diretrizes básicas para análise e comprovação de propriedades funcionais e ou de saúde alegadas em rotulagem de alimentos. Resolução nº 18, de 3 de dezembro de 1999.
AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA - ANVISA. Aprova o regulamento técnico de procedimentos para registro de alimento com alegação de propriedades funcionais e ou de saúde em sua rotulagem. Resolução nº 19, de 10 de dezembro de 1999.
AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA - ANVISA.. Aprova o regulamento técnico de procedimentos para registro de alimentos e ou novos ingredientes. Resolução nº 16, de 3 de dezembro de 1999.
BRASIL, Decreto-Lei nº 986 de 21, de outubro de 1969. Institui Normas Básicas sobre Alimentos. Diário Oficial da União, 21 de outubro de 1969.
CÂNDIDO & CAMPOS, . Alimentos Funcionais - Uma Revisão. Bol. SBCTA,v.29, n.2, p.107, 1995.
Comité del Codex sobre Etiquetado de Alimentos. CX/FL 98/10. Anteproyecto de recomendaciones para el uso de declaraciones de propiedades saludables. Comentarios de gobiernos en el trâmite 3. Ottawa, mayo de 1998.
DeFelice, S. L. The need for a research-intensive nutraceutical industry: what can congress do? (the claims research connection). In S. Shaw (Ed.), Functional food, nutraceutical or pharmaceutical? 15-26 p. London:IBC, 1996.
GARY et al. Food Safety and Health Claims. Food Technology, may, p.92, 1994.
GISMONDO MR; DRAGO L; LOMBARDI A . Review of Probiotics Available to Modify Gastrointestinal Flora. Int J Antimicrob Agents, v..12, n.4, p. 287, aug., 1999.
NANCY, M. Functional Foods and Market Entry. The World of Ingredients, out/nov, p. 36, 1994.
PARK, Y.K. et al. Recentes Progressos dos Alimentos Funcionais. Bol SBCTA, v.31, n.2, p.200, 1999.
PETER FÜRST. Moderated discussion. American Journal of Clinical Nutrition, v.71, n.6: 1688S-1690S, june, 2000
ROBERFROID, M.B. What is beneficial for Health? The Concept of Functional Food. Food and Chemical Toxicology, n.37, p.1039, 1999.
Autores:
Luiz Eduardo Carvalho, professor da Faculdade de Farmácia da UFRJ (luizeduardo@ufrj.br)
Mirian Ribeiro Leite Moura, Departamento de Produtos Naturais e Alimentos (mmirian@pharma.ufrj.br)
Fonte: ACD UFRJ.
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